“Feliz é quem as musas/ amam, doce de sua boca flui a voz”
Hesíodo, Teogonia (vv. 96-97)
A arte de Elisabete Pires Monteiro possui um sentido amplo: toda a irrupção (a força energética) da pulsão plástica. Admite-se, implicitamente, a determinação “fundamental” do conceito freudiano de pulsão”. As pulsões caracterizam-se por aquilo que Lacan chama “deriva”. Parte-se da articulação das pulsões como rede de significantes. O que está implicado aqui é o fluxo do devir - a demanda que funda o inconsciente - as flutuações-bifurcações da criação plástica - que requer uma intensidade e um excesso pulsionais. Creio que o que é revivido na “transferência” é essa busca na qual o sujeito se procura correndo o risco de perder-se numa forma de “des-ser” e – porque não? – de loucura.
loucura poética
Platão (427-347 a.de C.) distinguia quatro formas de “loucura divina”: a loucura profética, a loucura ritual ou iniciática, a loucura poética e a loucura erótica. Todas elas, afirmava Platão, se produziam quando um deus alterava as habituais normas sociais. Afrodite e Eros eram considerados os deuses protectores da loucura erótica, o estado de arrebatamento que se tomava por desejável. As musas representavam a loucura poética, cujos produtos gozavam de grande aceitação entre o público. A loucura ritual se inspirava em Dionísio, e Apolo foi a divindade protectora da loucura profética. Poder-se-ia demonstrar que as sacerdotisas que emitiam vaticínios em Delfos prostavam-se em algum momento em cada uma destas formas de loucura. A palavra “mantis”, adivinho, vem de “mainein”, que significa experimentar o frenesi ou entrar em êxtasse.
figurações
O deslumbre, provocado pelas telas de Elisabete Pires Monteiro , pode-se explicar pelo carácter de circularidade. É a realidade da auto-travessia do corpo – a ancoragem da psique no corpo - que constitui grosso modo a lógica implacavelmente irresistível das suas obras. A sua pintura pode ser tomada como uma abertura às ficções (figurações) do eu. É inacessível por ser acessível. As suas criações enraízam-se no pulsional que tem por correlato a intemporalidade do inconsciente (as fulgurações do amor e suas formas sublimadas). A ambiguidade , imprescindível à arte, está arraigada na obra de Elisabete Pires Monteiro. Nas suas cogitações – obra-resultado - parece emergir eros (referenciável a partir de indícios indirectos, parciais ou dispersos) e seus prolongamentos simbólicos (recalcados, disfarçados ou transformados de uma sexualidade muito mais vasta do que as suas manifestações observáveis) .
“fora de si”
A pintura, em Elisabete Pires Monteiro, caracteriza-se como um tecido mesclado pela pré-cognição. Na configuração dos oráculos, da exaltação da Musa ou Apolo (um “fora de si”). A sua obra insólita - de re-conexão com a alma e o self - a cor eloquente - condensa os conteúdos espirituais da psique. “Desvarios” é uma ideia-chave: parte-se dos meandros de um acervo simbólico, um núcleo delirante, um “passe” mágico, um “traço” primeiro, arcaico, cosmogónico (uma “inspiração espiral”). É importante notar o traço somato psíquico: plano a plano centra-se no feminino (a especificidade feminina, que escapa, em larga medida, à conceptualização).
“fantasmática”
Em Elisabete Pires Monteiro defrontamo-nos com o elemento compulsivo – a compulsão à repetição – as singularidades de uma “fantasmática” pessoal. Mas a sua pintura, com efeito, não poderá ser circunscrita à espontaneidade do inconsciente - a economia libidinal (a libido transfigurada) e seus incidentes (episódios) biográficos - cujo ponto de partida seria a pregnância (regressão) neurótica ( “perversidade”). O seu trabalho consubstancia – por sinal - um modo pessoal e estilizado – no entrelaçamento afirmativo da infra-estrutura do inconsciente - deve considerar-se como indissociável da “revêrie” poética. Revela-nos numa série de pautas esotéricas e de arquétipos universais “imagens-princípios”. Não se pode esquecer, além disso, a proeminência do onirismo.
(com)pulsional
Nas telas de Elisabete Pires Monteiro assiste-se a essa transformação da imagem sensorial em imagem íntima e símbolo (na assimilação de efeitos pictóricos únicos, nunca repetidos). Torna-se bem patente o âmbito das mediações (o simulacro) do desejo: uma “mélange” de erotismo e de “quête” da alma. A sua arte constitui, como já dissemos, um “singularizar” que põe em jogo inúmeros planos do conhecimento e da experiência. Vemo-nos transportados ao inconsciente - o pensamento não pensado - o “trabalho do sonho”.
arqué
A fantasia inconsciente – na sua função simbólica - encontra o meio de expressar seus conteúdos. Será lícito falar-se de uma pintura que nada tem a dissimular. Sobrevém aqui o enigma do desejo - do lado do sintoma - o reinvestir do corpo e do pensamento (na “reportação” às profundezas da arqué). E por isto mesmo se compreende o seu género livre - leia-se - de desnudamento e de nudez. A diferentes níveis perpassa o sagrado, do in-habitual em face do quotidiano e do familiar. O aspecto dominante e típico da sua pintura continua, no entanto, a ser, em nosso entender, a sua força (com)pulsional, constituindo ela, afinal, um corpo disseminado. E em que o descensus torna-se ascensus.
Alexandre Teixeira Mendes
Porto, Outubro de 2009
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