sexta-feira, 25 de abril de 2014
sexta-feira, 4 de abril de 2014
A METACRONICIDADE OU O PRIMITIVISMO DO COMPLEXO
“XAMANISMOS” DE ELISABETE PIRES MONTEIRO:
A METACRONICIDADE OU O PRIMITIVISMO DO COMPLEXO
“O ser humano é um animal que não pode viver unicamente na temporalidade terrestre e ele procura articular essa temporalidade sobre uma vida cósmica ou eterna (metacronicidade)”
Jean Marejko, Le Roi du Technocosme est nu in Temps Cosmique Histoire Humaine, Paris, Vrin, 1996, p. 95-96
Elisabete Pires Monteiro (Sully-sur-Loire, 1974) condensa em si uma miríade de associações no enraizamento de temas arcaicos (cosmogónicos). Pode ainda reconhecer-se esse estatuto de uma arte da (intra)verificação da linguagem religiosa e, portanto, das figuras-arquetípicas. Operando subliminarmente nas fissuras da significação, ora com traços iniciáticos e terapêuticos, ora revestindo uma dimensão de depuração (tecnicista e intelectual), a sua pintura é a revelação do primitivismo do complexo, da cosmosofia e da aventura metapsíquica. De facto, a ênfase de uma arte codificada (gaia ciência ou gaio saber) assente numa (proto)linguagem associada ao onírico - o místico-religioso - a transmutação e a metamorfose - intercepta a instância do diferencial feminino (associada ao poético-literário e ao cosmovisional-simbólico). E aqui é pertinente evocar a Terra-Mãe - enquanto categoria prévia - e cume de acesso a uma visão tipicamente humana (humanada) onde se apreendem - directa e imediatamente - os fenómenos catatónicos ou subterrâneos (nocturnos) e metatónicos, urânicos ou celestes (transcendentes). Conexo com os pressupostos de uma simbólica em que o corpo é terráqueo, o espírito solar-celeste, e a alma, lunar.
Co-implicação simbólica
Convém sublinhar que a criação pictórica de Elisabete Pires Monteiro partilha até ao extremo uma visão do mundo resolutamente transversal, surreal, côncava, reversiva. A lógica estética-religiosa ou metamorfótica é algo constitutivo, essencial, estrutural, nesta pintura. E, evidentemente, a metacronicidade. De resto, se se considerarem mais de perto estes quadros - na sua co-implicação simbólica - pode ver-se aqui claramente a sua associação ao arquetípico da gaia, mater, mãe ou elemento feminino, receptor, fecundável, Mais do que um mero exercício assente nas técnicas convencionais ou experimentais, a sua pintura - na ligação ao pensamento mágico - fixa a nossa atenção nas abordagens do xamanismo que está profundamente enraizado na experiência extática visionária. Desde logo, em consonância com o que Roger Bastide chama o “sagrado selvagem”. Parece-nos, no entanto, que no seu trabalho - “em série” - entrelaçam-se as marcas do jogo do mundo e do jogo da criação (poesis). O vínculo ao xamanismo - a religiosidade naturalista assente nas visões proféticas, conhecimento judicioso ou a visão em voo - deixa-se facilmente apreender por uma análise compreensiva.
Vidente e guardião das tradições
“Xamanismos” – título da exposição – enquanto partilha de uma pintura-padrão - mítico-sacral e totémica – cognoscitiva - encruzilhada do sonho como religião da mente - é fundamentalmente uma homenagem ao xamã e, em todo o caso, o seu mundo tribal (na valorização - a partir das forças invisíveis do universo - do numinoso- da demanda do centro sagrado do mundo - a árvore cósmica). Retenhamos apenas, por agora, um conjunto de quadros-variações, onde os xamãs não são meramente capturados; são tornados uma tradição viva – como “especialistas do sagrado” - que trabalham secretamente técnicas especiais - que incluem jejum, meditação e o uso de substâncias químicas – ervas intoxicantes – botânica dos alucinogénios sagrados - capazes de dispararem estados alternativos de consciência. Consideremos mais de perto o seu papel fundamental de adivinho, vidente, mágico, poeta, cantor, artista, profeta da caça e do tempo, guardião das tradições e, por consequência, curandeiro das doenças do corpo e do espírito. Reencontramos neste ponto o médico-ervanário manipulando complexas misturas terapêuticas e farmacológicas (com base nos critérios de que as plantas psicotrópicas são mágicas e sagradas).
Mundo onírico arcaico
Se quisermos traçar o quadro destas pinturas - variações arquétipas ou imagens primitivas - , há, pois, antes de mais, que determinar aquilo que se considera como mundo do xamã. Não é esse aqui o nosso propósito. Quando nos apercebemos - esforçadamente - dos esteios e dos caminhos duma arte plena de reminiscências e de projecções (iluminação involuntária dos desvãos e subsolos do nosso mundo psíquico por exemplo), apercebemo-nos, assimilando-a a um mundo onírico arcaico, “eterno” e “ubíquo” (como diria C.G. Jung). Todos sabemos da importância extraordinária que, nestes dois últimos séculos, foi tomando o estudo da história das religiões sobre o sagrado. A etno-história e a antropologia - na sua reflexão sobre a trajectória da humanidade - mostraram-nos que as mais antigas representações artísticas da humanidade tiveram o seu ponto de partida nas preocupações mágico-religiosas. Neste sentido, é de salientar que estas imagens desenhadas, por assim dizer, em plataformas e em nichos naturais - do tipo santuário - na sua precisão técnica - enquanto tentativa de retractar o movimento cinemático - aparecem-nos sobretudo como figuras super-realistas que carregam uma crença forte na eficácia da acção simbólica.
“Medecine-man”, “brujo”
O importante e decisivo dos desenhos sagrados gravados - no fundo das cavernas - está no facto de nos revelarem não somente o fulcro da auto-comunicação com o “numinoso” - a divindade em toda a amplitude da sua realidade - como alicerce das forças que unem homens e animais. E, consequentemente, a consignação da chamada “meta-experiência” mística, mas também da exaltação interior e, concludentemente, da crença fundada do que se não vê - as realidades espirituais. Aqui se entreabre um campo imenso - o da religião arcaica - o que é a definição mesma da religião primitiva - sob o influxo do xamã (que representa afinal o guardião genuíno e inflexível do saber tradicional na ligação ao mundo natural e espiritual) . Ele assume-se, em suas orientações fundamentais, como o especialista de plantas sagradas, o “medicine-man” e o “brujo”. O que Mircea Elíade não cessa de reconhecer é, se se quiser, a sintonia que existe entre o “homem” e o “ser religioso”. Mantém, inegavelmente, o parecer de que o religioso não é um “estádio”, mas um elemento - voltemo-lo a dizer - da “consciência humana”. Ancorado nesta perspectiva assinala, por outro lado, que as formas (algumas formas) do sagrado podem ser criações culturais e são-no de facto..
Alexandre Teixeira Mendes
Porto, 3 de Abril de 2004
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